Julia e a raposa (Julia y el zorro/Julia and the fox) 2018 é um filme instigante e provocador. É o segundo longa-metragem da roteirista e realizadora argentina Inés María Barrionuevo. O filme estreou no Festival Internacional de Cinema de San Sebastian/Espanha e envolve o universo familiar e intimista de uma mulher de cerca 50 anos, Julia (Umbra Colombo), uma reconhecida atriz, cuja profissão deixou para trás. Ela é mãe de Emma (Victoria Castelo Arzubialde) e juntas estão a atravessar o luto e a dor pela perda do marido e pai da menina de 12 anos; as duas se instalam durante o inverno numa grande casa de campo num vilarejo ao redor de Córdoba, Argentina, uma moradia que no passado elas compartilharam dias felizes.

Num monólogo longo e lento da peça teatral Happy days/Dias felizes (1961) de Samuel Beckett, concebida em dois atos, com estética minimalista, sutis movimentos repetitivos que se diferenciam, a protagonista Winnie (que assim como a personagem do filme de Inés, é uma mulher de cerca de 50 anos), encontra-se enterrada até o pescoço por um monte de terra, presa num espaço tentando deter a passagem do tempo. Uma mulher que se sente devorada pelos seus gestos e afetos, presa à sua vida pretérita, a um tempo que a impede de agir num presente em colapso e que escorre por inércia e sem comoção.

Fazendo uma conexão com a personagem do filme Julia e a raposa, Julia está presa ao tempo passado com o marido, que já não existe mais, abandonando sua vida no palco e perdendo o poder de expressar seus gestos e vitalidade; vivendo num presente que escoa por imobilidade e sem emoção.

Na dramaturgia Beckettiana e na encenação de Inés é o estado íntimo das personagens que mais interessa, ambas as narrativas abarcam a história de mulheres, que por razões distintas se vêem distantes dos companheiros de vida. Na primeira, o homem está supostamente vivo, mas fisicamente invisível em cena; e na segunda, o marido de Julia morreu num acidente de carro. Winnie e Julia, são duas mulheres atadas no espaço-tempo frente aos seus sentimentos. Elas resistem e precisam apostar nas suas próprias vidas para lá do que foi ou resta da relação com os maridos.
Fica então um convite a refletir: o que PARALISA e o que LIBERTA?

Julia deixa sua moradia na cidade e retorna à casa herdada do marido, na intenção de reformá-la e vendê-la, lugar onde ela vai transcorrer dias desafiantes com a filha, que muitas vezes confronta sua responsabilidade enquanto mãe. Ambas estão em sofrimento emocional e estado de inquietante calmaria, de tensão perturbadora e pungente. Durante a estadia, Julia vê-se diante da necessidade de lidar com os seus fantasmas e com a maternidade, algo difícil e conflituoso para ela e com a filha, a qual se sente desamparada e pouco acolhida pela mãe. Estabelecendo uma relação por vezes de rispidez entre elas, cada uma defende-se como pode e se agarra ao vazio e a ausência do pai e marido que tanta falta lhes faz. Depois da morte do companheiro, Julia perdeu interesse por tudo e será muito lentamente que este sentimento vai mudar ao longo do filme e não de modo fácil para ela e Emma.

A casa para onde se deslocaram, se encontra em abandono pois ficou fechada por longo tempo depois da morte do marido de Julia, e pode ser uma metáfora do estado existencial dela e sua filha. No dia-a-dia vamos perceber a impossibilidade de comunicação e demonstração de afetos entre estas mulheres, que por mais que estejam tristes e fragilizadas precisam inventar novos modos de vida para sobreviverem enquanto mãe e filha. Elas tentam, se debatem, insistem e uma sustenta a outra em sua angústia. Em raros momentos a mãe expressa carinho pela filha, como vemos no frame abaixo.

Há momentos em que Julia expressa-se de modo egocêntrico, mas ela sequer tem amor por si própria, muito menos para doar. E tampouco tem paciência e empatia com a filha para assumir os supostos deveres maternais. Vivendo sozinha com Emma, a maternidade torna-se um fardo para Julia, algo nada aprazível; se é que no passado, enquanto ela trabalhava como atriz e vivia com o marido, ser mãe era algo que lhe dava prazer. Ela não consegue conectar-se com a filha no tempo presente, talvez isso não tenha sido possível também quando o marido estava vivo, época em que Emma demonstra no filme que recebia amor e cuidados do pai. A mãe e a filha, não se conhecem bem e em várias cenas ouvimos e vemos isto nos diálogos entre elas. Julia, assim como Emma, está abalada, perturbada, sem afetos positivos. A mãe está mal consigo mesma e com a filha. Existem mulheres que não querem ou não dão conta de cuidar de filhos, a Julia é uma dessas e não se sente culpada por isso, mas é possível que haja julgamento social (dos espectadores) por ela agir assim. As mulheres e mães sempre foram julgadas pela sociedade pelo que fazem ou deixam de fazer.

Através de gestos agressivos e dissonantes, em especial da mãe, dando a ver o quão é doloroso para Julia ser mãe, o quanto a ausência do marido e pai de Emma desestabiliza estas duas gerações de mulheres; e o quão difícil é para Julia recompor os liames familiares, ao mesmo tempo que libertar-se dos limites e do insustentável peso e papel social de ser mulher e mãe. Uma mulher e mãe que não finge ser o que não é.

A relação conflituosa entre uma mãe e filha é algo que acontece também no plano da realidade. A MATERNIDADE CARREGA CONTRADIÇÕES. Aliás, tenho visto recentemente muitas mulheres relatarem publicamente que a maternidade não é a todo tempo algo tranquilo e feliz. Libertando-se de uma suposta plenitude ou prazer permanente em ser mãe e amar os filhos incondicionalmente.

Para a feminista Chimamanda Ngozi Adichie, a mulher não deve ser definida apenas pela maternidade, mas com uma pessoa completa. Ela destaca ainda que não existe uma Super Mulher. Há certa hipocrisia na sociedade em que ser mãe é ser perfeita e realizar-se como mulher, o que as pessoas esquecem é que mães são seres humanos, têm sentimentos humanos e nem todas as mulheres querem e se realizam sendo mãe. A maternidade não pode ser uma obrigação social e uma mulher, mesmo depois de gerar um filho, pode perceber que não é capaz de ser mãe nos moldes sociais ou de assumir as presumidas tarefas de uma mulher-mãe. Esta discussão sobre a mulher e a maternidade pode ser apreendida na narrativa muito bem alinhavada do filme de Inés María Barrionuevo.

A escritora feminista brasileira Clara Averbuck, num recente texto sobre a comemoração dos dias das mães, relata que a sociedade coloca um peso e toda a responsabilidade de ter e criar filhos na figura da mulher/da mãe e isenta os pais. Homens que, no meu ponto de vista, no Brasil, em sua maioria, servem quase sempre para acasalar/procriar e não para cuidar dos filhos, o que para a sociedade está tudo bem, pois é à mulher que é conferido tal cuidado. Clara declara ainda:

“Não romantizem a maternidade. Mãe não é guerreira, super-heroína, não é “pãe”. Mãe é gente, mãe erra, sente, sofre. Mãe vive, mãe transa, mãe goza. Mãe existe além de ser mãe. Mãe é indivíduo, não ser imaculado. Não romantizem a maternidade. É difícil lidar com filhos, lidar com a expectativa da sociedade e com o peso que ela nos coloca sobre os ombros e que nos sufoca”.

Outra brasileira que não romantiza a maternidade é a atriz Karla Tenório. Ela confessa neste texto que sente culpa por ser mãe, algo que lhe é doloroso. E complementa: “Transformei minha angústia em um movimento para amparar mulheres como eu: que não gostam da maternidade. Sou criadora do “Mãe Arrependida” que visa à libertação da voz das mães que não são felizes como mães, que sofrem e sentem culpa por conta da maternidade”.

Na visão da intelectual feminista bell hooks, no livro Tudo sobre o amor: novas perspectivas (2021), as mulheres são encorajadas pelo pensamento patriarcal a acreditar que devem ser sempre amorosas nas relações familiares.

Julia aproxima-se do pensamento dessas mulheres e ao longo do filme vai reconstruindo a sua identidade enquanto mulher e mãe, assumindo as rédeas da sua nova vida, saindo do interior de si e do amargor do luto. Neste sentido, ilustro uma bela cena aos 46’ 26’’- 48′ 16 ” (frame abaixo), em que ela está num bar com o amigo Gaspar e uma mulher (Marta del Valle Rodriguez) canta Como te ha ido?; música composta por German A.Sanchez, cuja letra atinge o lado emocional de Julia e parece levá-la a seu longínquo passado afetivo, mas ela retoma a sua liberdade, voltando-se para a realidade, se levanta e se lança na pista de dança com seu amigo Gaspar, juntando-se a outros dançantes que também foram atraídos pela deliciosa, ritmada e envolvente sonoridade.

Um filme cuja protagonista provoca o pensamento e dialoga com a personagem Julia e que desejo aproximar da narrativa construída por Inés, é A mulher canhota (Die linkshändige Frau), 1978, do austríaco Peter Handke, uma adaptação do seu romance homónimo (título para mim estranho). A protagonista, Marianne (Edith Clever), assim como Julia, é uma mulher de cerca 50 anos. Uma tradutora que vive numa grande casa no subúrbio de uma zona industrial de Paris, casada, aparentemente feliz, e mãe de um filho com cerca de 12 anos. Uma mulher que de um momento para outro e sem justificativa visível decide se separar e manda embora de casa o marido (Bruno Ganz), e se separam sem discussões. A partir daí ela tem que lidar com o solitário trabalho de tradutora, os seus afetos e fantasmas, as provocações e tramas infanto-juvenis do filho (assim como aqueles de Emma, a filha de Julia), lidar com todas mudanças que deseja para a sua nova vida. Marianne vai delineando sua autossuficiência e liberdade, vivendo fora das convenções sociais.

Tanto Julia quanto Marianne são mulheres que rompem as imposições sociais com relação a maternidade, a ser mulher e mãe. Em algumas cenas, certas ações, falas, gestos e sentimentos delas, nos dois filmes, podem até mesmo desestabilizar aqueles que têm uma cabeça mais aberta sobre estes temas, pois o imaginário social ainda é muito focado numa estrutura masculina e repressiva, no que diz respeito aos direitos da mulher e à sua independência. A maternidade e suas divergências têm estado cada vez mais na pauta das discussões femininas e em alguns filmes recentes de algumas realizadoras. Não dá mais para ignorar o quanto esta questão afeta muitas de nós mulheres.

Sobre o roteiro do filme Julia e a raposa, numa entrevista concedida em novembro de 2018 na Argentina, a diretora declara que foi construído com pequenas notas, partindo da história de sua própria família, da sua avó e mãe, misturada com outras. Inclusive nos créditos iniciais, ela dedica o filme à sua avó. E relata que o título e a estrutura da narrativa do filme foram inspirados em fábulas que tem como personagens dois animais (ou a eles fazem alegorias).

Uma fábula é um texto narrativo alegórico que constrói e relaciona os personagens às qualidades ou defeitos, aos sentimentos do homem através do comportamento dos animais. Ligação que vemos no cartaz do filme (frame abaixo), nas parcas cenas no quintal da casa quando Julia, à noite, alimenta el zorro e depois no final do filme. El zorro em português é raposa, nome que em espanhol é masculino.

Isto remeteu-me às famosas Fábulas de Esopo (620—560 a.C.), um contador de histórias da Grécia antiga, que em suas narrativas colocava em relação dois animais, delineando suas características e pensando em deixar visível a moral da história. Trago o exemplo da fábula O macaco e a raposa:

“Um macaco sem rabo pediu a uma raposa que cortasse metade do seu e lhe desse: ‘como o teu rabo é demasiado grande, pois até se arrasta e varre o chão; o que dele sobra poderia dar a mim para cobrir as partes que vergonhosamente estão descobertas’. Respondeu a raposa ao macaco: ‘prefiro que ele arraste e varra o chão, do que você se aproveitar dele. Por isso, não te darei, não quero que você se beneficie de algo meu’. E assim, ficou o Macaco sem o rabo da Raposa”.

Moral da história: Semelhantes a esta Raposa são todos os que não querem que algo seu seja útil a outrem; e igualmente se aplica àqueles que muito têm e não querem partilhar com quem sofre pela falta.

A diretora do filme aproxima o comportamento de uma mulher e um animal, à raposa, que é silenciosa, observadora e astuta. Há muita coisa no filme simbólica e metafórica. Diferente das fábulas de Esopo, a personagem Julia não foi pensada como uma fábula moral, pelo contrário, Inés questiona os moralismos, as regras sociais que são exigidas à mulher e desconstrói a maternidade e a noção “normal” que temos de família, de um modelo estabelecido socialmente.

No derivar da narrativa fílmica, como num rito de passagem, algo vai alterar com mais intensidade o rumo da vida conflituosa e solitária de mãe e filha, quando Julia reencontra Gaspar (Pablo Limarzi), um amigo de longa data e do campo artístico, assim como ela. A partir daí e das mudanças internas de Julia, juntos reconstroem as suas narrativas existenciais inventando e partilhando um novo arranjo familiar composto por uma mulher, uma pré-adolescente e dois homens (um casal homoafetivo), composição pouco convencional, mas possível nos tempos atuais, me refiro a realidade e não apenas a ficção.

O filme foi rodado com predominância de planos mais fechados e cenas internas, aproveitando muito bem a luz que entra pelas janelas da casa onde estão a viver Julia e Emma, como é possível perceber no frame abaixo.

Ressalto ainda a suavidade da trilha sonora, expressando os sentimentos da Julia (como na mencionada cena da dança no bar) e os da filha nas suas descobertas infanto-juvenis; somado aos movimentos que compõem a vidas dessas mulheres, aos sons da natureza e os ruídos de portas e janelas da casa onde vivem. Saliento, por fim, que os atores são bem dirigidos por Inés e estão muito à vontade diante da câmera.

Depois de ter praticamente finalizado este texto, numa troca de e-mails com a realizadora, perguntei-lhe quais foram as suas referências para este filme. E sua resposta foi:
“As referências são muitas. Vêm de lugares diferentes, quase como uma fragmentação de memórias, imagens, as minhas próprias experiências. Foi assim que o filme se construiu ao longo dos anos de desenvolvimento. Escrevo num caderno ou bloco de notas e junto as coisas, no final é como uma memória do imaginário do filme. Há um filme específico que me inspirou para Julia y el zorro é Casa de Lava de Pedro Costa e também o seu caderno de apontamentos sobre o filme. Sobretudo a sensação que gerou em mim num dia quente de verão, quando o vi, e a forma como ele contou a história ao estilo de Bresson, com certa austeridade e secura das filmagens. Eu tinha acabado de fazer o meu primeiro filme, que é muito diferente, e isso mudou minha maneira de pensar o segundo filme que eu estava a realizar”.

Perguntei também a Inés quais as dificuldades de fazer cinema hoje na Argentina, sobretudo para realizadoras. Ao que ela respondeu:
“É difícil falar de cinema no meio de uma pandemia global. Sinto que algo perdeu o seu significado, é triste, não podemos continuar a fazer este trabalho da forma como o fazíamos antigamente. Sinto que temos que nos reinventar, é um caminho difícil. Quanto a ser mulher e fazer filmes… há uma naturalização que vem com muitos anos de patriarcado de certos papéis no cinema. Isto está a mudar pouco a pouco. Para mim, não se trata apenas da cota de gênero nas filmagens, mas também de mudar coisas que não são tão óbvias, como comportamentos ou formas muito subtis de trabalho no set de filmagem. Parece que as mulheres e a tarefa histórica de serem relegadas para tarefas domésticas também nos deu uma grande capacidade de força e adaptação”.
P.S. Tradução minha Espanhol/PT

Julia e a raposa (Julia y el zorro/Julia and the fox) foi realizado com recursos do Instituto do Cinema Argentino (INCAA) e obteve apoio do pólo audiovisual de Córdoba e do Município de Unquillo, localidade onde foi rodado o filme, fica próxima a Córdoba. E integra a edição especial da Mostra de Cinema Argentino de Mujeres, composta pela filmografia completa de Inés María Barrionuevo. Os filmes da realizadora foram exibidos em salas de cinema na Argentina e em festivais de cinema de vários países, tendo sido premiados em alguns deles.

Lídia Mello é brasileira. Dentre outras coisas, é Programadora, Curadora e Crítica de cinema. Escreve críticas fílmicas para o site C7NEMA, com ênfase em filmes realizados por mulheres. É Doutora em Artes/Cinema pela EBA/UFMG/Brasil e autora do livro Do cinema de Béla Tarr (2019).

P.S. Este texto foi também publicado no site português C7NEMA, com alguma variação.