Júlia e a raposa

A maternidade carrega contradições: a propósito do filme Julia e a raposa.

Julia e a raposa (Julia y el zorro/Julia and the fox) 2018 é um filme instigante e provocador. É o segundo longa-metragem da roteirista e realizadora argentina Inés María Barrionuevo. O filme estreou no Festival Internacional de Cinema de San Sebastian/Espanha e envolve o universo familiar e intimista de uma mulher de cerca 50 anos, Julia (Umbra Colombo), uma reconhecida atriz, cuja profissão deixou para trás. Ela é mãe de Emma (Victoria Castelo Arzubialde) e juntas estão a atravessar o luto e a dor pela perda do marido e pai da menina de 12 anos; as duas se instalam durante o inverno numa grande casa de campo num vilarejo ao redor de Córdoba, Argentina, uma moradia que no passado elas compartilharam dias felizes.

Num monólogo longo e lento da peça teatral Happy days/Dias felizes (1961) de Samuel Beckett, concebida em dois atos, com estética minimalista, sutis movimentos repetitivos que se diferenciam, a protagonista Winnie (que assim como a personagem do filme de Inés, é uma mulher de cerca de 50 anos), encontra-se enterrada até o pescoço por um monte de terra, presa num espaço tentando deter a passagem do tempo. Uma mulher que se sente devorada pelos seus gestos e afetos, presa à sua vida pretérita, a um tempo que a impede de agir num presente em colapso e que escorre por inércia e sem comoção.

Fazendo uma conexão com a personagem do filme Julia e a raposa, Julia está presa ao tempo passado com o marido, que já não existe mais, abandonando sua vida no palco e perdendo o poder de expressar seus gestos e vitalidade; vivendo num presente que escoa por imobilidade e sem emoção.

Na dramaturgia Beckettiana e na encenação de Inés é o estado íntimo das personagens que mais interessa, ambas as narrativas abarcam a história de mulheres, que por razões distintas se vêem distantes dos companheiros de vida. Na primeira, o homem está supostamente vivo, mas fisicamente invisível em cena; e na segunda, o marido de Julia morreu num acidente de carro. Winnie e Julia, são duas mulheres atadas no espaço-tempo frente aos seus sentimentos. Elas resistem e precisam apostar nas suas próprias vidas para lá do que foi ou resta da relação com os maridos.
Fica então um convite a refletir: o que PARALISA e o que LIBERTA?

Julia deixa sua moradia na cidade e retorna à casa herdada do marido, na intenção de reformá-la e vendê-la, lugar onde ela vai transcorrer dias desafiantes com a filha, que muitas vezes confronta sua responsabilidade enquanto mãe. Ambas estão em sofrimento emocional e estado de inquietante calmaria, de tensão perturbadora e pungente. Durante a estadia, Julia vê-se diante da necessidade de lidar com os seus fantasmas e com a maternidade, algo difícil e conflituoso para ela e com a filha, a qual se sente desamparada e pouco acolhida pela mãe. Estabelecendo uma relação por vezes de rispidez entre elas, cada uma defende-se como pode e se agarra ao vazio e a ausência do pai e marido que tanta falta lhes faz. Depois da morte do companheiro, Julia perdeu interesse por tudo e será muito lentamente que este sentimento vai mudar ao longo do filme e não de modo fácil para ela e Emma.

A casa para onde se deslocaram, se encontra em abandono pois ficou fechada por longo tempo depois da morte do marido de Julia, e pode ser uma metáfora do estado existencial dela e sua filha. No dia-a-dia vamos perceber a impossibilidade de comunicação e demonstração de afetos entre estas mulheres, que por mais que estejam tristes e fragilizadas precisam inventar novos modos de vida para sobreviverem enquanto mãe e filha. Elas tentam, se debatem, insistem e uma sustenta a outra em sua angústia. Em raros momentos a mãe expressa carinho pela filha, como vemos no frame abaixo.

Há momentos em que Julia expressa-se de modo egocêntrico, mas ela sequer tem amor por si própria, muito menos para doar. E tampouco tem paciência e empatia com a filha para assumir os supostos deveres maternais. Vivendo sozinha com Emma, a maternidade torna-se um fardo para Julia, algo nada aprazível; se é que no passado, enquanto ela trabalhava como atriz e vivia com o marido, ser mãe era algo que lhe dava prazer. Ela não consegue conectar-se com a filha no tempo presente, talvez isso não tenha sido possível também quando o marido estava vivo, época em que Emma demonstra no filme que recebia amor e cuidados do pai. A mãe e a filha, não se conhecem bem e em várias cenas ouvimos e vemos isto nos diálogos entre elas. Julia, assim como Emma, está abalada, perturbada, sem afetos positivos. A mãe está mal consigo mesma e com a filha. Existem mulheres que não querem ou não dão conta de cuidar de filhos, a Julia é uma dessas e não se sente culpada por isso, mas é possível que haja julgamento social (dos espectadores) por ela agir assim. As mulheres e mães sempre foram julgadas pela sociedade pelo que fazem ou deixam de fazer.

Através de gestos agressivos e dissonantes, em especial da mãe, dando a ver o quão é doloroso para Julia ser mãe, o quanto a ausência do marido e pai de Emma desestabiliza estas duas gerações de mulheres; e o quão difícil é para Julia recompor os liames familiares, ao mesmo tempo que libertar-se dos limites e do insustentável peso e papel social de ser mulher e mãe. Uma mulher e mãe que não finge ser o que não é.

A relação conflituosa entre uma mãe e filha é algo que acontece também no plano da realidade. A MATERNIDADE CARREGA CONTRADIÇÕES. Aliás, tenho visto recentemente muitas mulheres relatarem publicamente que a maternidade não é a todo tempo algo tranquilo e feliz. Libertando-se de uma suposta plenitude ou prazer permanente em ser mãe e amar os filhos incondicionalmente.

Para a feminista Chimamanda Ngozi Adichie, a mulher não deve ser definida apenas pela maternidade, mas com uma pessoa completa. Ela destaca ainda que não existe uma Super Mulher. Há certa hipocrisia na sociedade em que ser mãe é ser perfeita e realizar-se como mulher, o que as pessoas esquecem é que mães são seres humanos, têm sentimentos humanos e nem todas as mulheres querem e se realizam sendo mãe. A maternidade não pode ser uma obrigação social e uma mulher, mesmo depois de gerar um filho, pode perceber que não é capaz de ser mãe nos moldes sociais ou de assumir as presumidas tarefas de uma mulher-mãe. Esta discussão sobre a mulher e a maternidade pode ser apreendida na narrativa muito bem alinhavada do filme de Inés María Barrionuevo.

A escritora feminista brasileira Clara Averbuck, num recente texto sobre a comemoração dos dias das mães, relata que a sociedade coloca um peso e toda a responsabilidade de ter e criar filhos na figura da mulher/da mãe e isenta os pais. Homens que, no meu ponto de vista, no Brasil, em sua maioria, servem quase sempre para acasalar/procriar e não para cuidar dos filhos, o que para a sociedade está tudo bem, pois é à mulher que é conferido tal cuidado. Clara declara ainda:

“Não romantizem a maternidade. Mãe não é guerreira, super-heroína, não é “pãe”. Mãe é gente, mãe erra, sente, sofre. Mãe vive, mãe transa, mãe goza. Mãe existe além de ser mãe. Mãe é indivíduo, não ser imaculado. Não romantizem a maternidade. É difícil lidar com filhos, lidar com a expectativa da sociedade e com o peso que ela nos coloca sobre os ombros e que nos sufoca”.

Outra brasileira que não romantiza a maternidade é a atriz Karla Tenório. Ela confessa neste texto que sente culpa por ser mãe, algo que lhe é doloroso. E complementa: “Transformei minha angústia em um movimento para amparar mulheres como eu: que não gostam da maternidade. Sou criadora do “Mãe Arrependida” que visa à libertação da voz das mães que não são felizes como mães, que sofrem e sentem culpa por conta da maternidade”.

Na visão da intelectual feminista bell hooks, no livro Tudo sobre o amor: novas perspectivas (2021), as mulheres são encorajadas pelo pensamento patriarcal a acreditar que devem ser sempre amorosas nas relações familiares.

Julia aproxima-se do pensamento dessas mulheres e ao longo do filme vai reconstruindo a sua identidade enquanto mulher e mãe, assumindo as rédeas da sua nova vida, saindo do interior de si e do amargor do luto. Neste sentido, ilustro uma bela cena aos 46’ 26’’- 48′ 16 ” (frame abaixo), em que ela está num bar com o amigo Gaspar e uma mulher (Marta del Valle Rodriguez) canta Como te ha ido?; música composta por German A.Sanchez, cuja letra atinge o lado emocional de Julia e parece levá-la a seu longínquo passado afetivo, mas ela retoma a sua liberdade, voltando-se para a realidade, se levanta e se lança na pista de dança com seu amigo Gaspar, juntando-se a outros dançantes que também foram atraídos pela deliciosa, ritmada e envolvente sonoridade.

Um filme cuja protagonista provoca o pensamento e dialoga com a personagem Julia e que desejo aproximar da narrativa construída por Inés, é A mulher canhota (Die linkshändige Frau), 1978, do austríaco Peter Handke, uma adaptação do seu romance homónimo (título para mim estranho). A protagonista, Marianne (Edith Clever), assim como Julia, é uma mulher de cerca 50 anos. Uma tradutora que vive numa grande casa no subúrbio de uma zona industrial de Paris, casada, aparentemente feliz, e mãe de um filho com cerca de 12 anos. Uma mulher que de um momento para outro e sem justificativa visível decide se separar e manda embora de casa o marido (Bruno Ganz), e se separam sem discussões. A partir daí ela tem que lidar com o solitário trabalho de tradutora, os seus afetos e fantasmas, as provocações e tramas infanto-juvenis do filho (assim como aqueles de Emma, a filha de Julia), lidar com todas mudanças que deseja para a sua nova vida. Marianne vai delineando sua autossuficiência e liberdade, vivendo fora das convenções sociais.

Tanto Julia quanto Marianne são mulheres que rompem as imposições sociais com relação a maternidade, a ser mulher e mãe. Em algumas cenas, certas ações, falas, gestos e sentimentos delas, nos dois filmes, podem até mesmo desestabilizar aqueles que têm uma cabeça mais aberta sobre estes temas, pois o imaginário social ainda é muito focado numa estrutura masculina e repressiva, no que diz respeito aos direitos da mulher e à sua independência. A maternidade e suas divergências têm estado cada vez mais na pauta das discussões femininas e em alguns filmes recentes de algumas realizadoras. Não dá mais para ignorar o quanto esta questão afeta muitas de nós mulheres.

Sobre o roteiro do filme Julia e a raposa, numa entrevista concedida em novembro de 2018 na Argentina, a diretora declara que foi construído com pequenas notas, partindo da história de sua própria família, da sua avó e mãe, misturada com outras. Inclusive nos créditos iniciais, ela dedica o filme à sua avó. E relata que o título e a estrutura da narrativa do filme foram inspirados em fábulas que tem como personagens dois animais (ou a eles fazem alegorias).

Uma fábula é um texto narrativo alegórico que constrói e relaciona os personagens às qualidades ou defeitos, aos sentimentos do homem através do comportamento dos animais. Ligação que vemos no cartaz do filme (frame abaixo), nas parcas cenas no quintal da casa quando Julia, à noite, alimenta el zorro e depois no final do filme. El zorro em português é raposa, nome que em espanhol é masculino.

Isto remeteu-me às famosas Fábulas de Esopo (620—560 a.C.), um contador de histórias da Grécia antiga, que em suas narrativas colocava em relação dois animais, delineando suas características e pensando em deixar visível a moral da história. Trago o exemplo da fábula O macaco e a raposa:

“Um macaco sem rabo pediu a uma raposa que cortasse metade do seu e lhe desse: ‘como o teu rabo é demasiado grande, pois até se arrasta e varre o chão; o que dele sobra poderia dar a mim para cobrir as partes que vergonhosamente estão descobertas’. Respondeu a raposa ao macaco: ‘prefiro que ele arraste e varra o chão, do que você se aproveitar dele. Por isso, não te darei, não quero que você se beneficie de algo meu’. E assim, ficou o Macaco sem o rabo da Raposa”.

Moral da história: Semelhantes a esta Raposa são todos os que não querem que algo seu seja útil a outrem; e igualmente se aplica àqueles que muito têm e não querem partilhar com quem sofre pela falta.

A diretora do filme aproxima o comportamento de uma mulher e um animal, à raposa, que é silenciosa, observadora e astuta. Há muita coisa no filme simbólica e metafórica. Diferente das fábulas de Esopo, a personagem Julia não foi pensada como uma fábula moral, pelo contrário, Inés questiona os moralismos, as regras sociais que são exigidas à mulher e desconstrói a maternidade e a noção “normal” que temos de família, de um modelo estabelecido socialmente.

No derivar da narrativa fílmica, como num rito de passagem, algo vai alterar com mais intensidade o rumo da vida conflituosa e solitária de mãe e filha, quando Julia reencontra Gaspar (Pablo Limarzi), um amigo de longa data e do campo artístico, assim como ela. A partir daí e das mudanças internas de Julia, juntos reconstroem as suas narrativas existenciais inventando e partilhando um novo arranjo familiar composto por uma mulher, uma pré-adolescente e dois homens (um casal homoafetivo), composição pouco convencional, mas possível nos tempos atuais, me refiro a realidade e não apenas a ficção.

O filme foi rodado com predominância de planos mais fechados e cenas internas, aproveitando muito bem a luz que entra pelas janelas da casa onde estão a viver Julia e Emma, como é possível perceber no frame abaixo.

Ressalto ainda a suavidade da trilha sonora, expressando os sentimentos da Julia (como na mencionada cena da dança no bar) e os da filha nas suas descobertas infanto-juvenis; somado aos movimentos que compõem a vidas dessas mulheres, aos sons da natureza e os ruídos de portas e janelas da casa onde vivem. Saliento, por fim, que os atores são bem dirigidos por Inés e estão muito à vontade diante da câmera.

Depois de ter praticamente finalizado este texto, numa troca de e-mails com a realizadora, perguntei-lhe quais foram as suas referências para este filme. E sua resposta foi:
“As referências são muitas. Vêm de lugares diferentes, quase como uma fragmentação de memórias, imagens, as minhas próprias experiências. Foi assim que o filme se construiu ao longo dos anos de desenvolvimento. Escrevo num caderno ou bloco de notas e junto as coisas, no final é como uma memória do imaginário do filme. Há um filme específico que me inspirou para Julia y el zorro é Casa de Lava de Pedro Costa e também o seu caderno de apontamentos sobre o filme. Sobretudo a sensação que gerou em mim num dia quente de verão, quando o vi, e a forma como ele contou a história ao estilo de Bresson, com certa austeridade e secura das filmagens. Eu tinha acabado de fazer o meu primeiro filme, que é muito diferente, e isso mudou minha maneira de pensar o segundo filme que eu estava a realizar”.

Perguntei também a Inés quais as dificuldades de fazer cinema hoje na Argentina, sobretudo para realizadoras. Ao que ela respondeu:
“É difícil falar de cinema no meio de uma pandemia global. Sinto que algo perdeu o seu significado, é triste, não podemos continuar a fazer este trabalho da forma como o fazíamos antigamente. Sinto que temos que nos reinventar, é um caminho difícil. Quanto a ser mulher e fazer filmes… há uma naturalização que vem com muitos anos de patriarcado de certos papéis no cinema. Isto está a mudar pouco a pouco. Para mim, não se trata apenas da cota de gênero nas filmagens, mas também de mudar coisas que não são tão óbvias, como comportamentos ou formas muito subtis de trabalho no set de filmagem. Parece que as mulheres e a tarefa histórica de serem relegadas para tarefas domésticas também nos deu uma grande capacidade de força e adaptação”.
P.S. Tradução minha Espanhol/PT

Julia e a raposa (Julia y el zorro/Julia and the fox) foi realizado com recursos do Instituto do Cinema Argentino (INCAA) e obteve apoio do pólo audiovisual de Córdoba e do Município de Unquillo, localidade onde foi rodado o filme, fica próxima a Córdoba. E integra a edição especial da Mostra de Cinema Argentino de Mujeres, composta pela filmografia completa de Inés María Barrionuevo. Os filmes da realizadora foram exibidos em salas de cinema na Argentina e em festivais de cinema de vários países, tendo sido premiados em alguns deles.

Lídia Mello é brasileira. Dentre outras coisas, é Programadora, Curadora e Crítica de cinema. Escreve críticas fílmicas para o site C7NEMA, com ênfase em filmes realizados por mulheres. É Doutora em Artes/Cinema pela EBA/UFMG/Brasil e autora do livro Do cinema de Béla Tarr (2019).

P.S. Este texto foi também publicado no site português C7NEMA, com alguma variação.

Leia Mais
Mujeres

De cinemas e encontros (im)possíveis: ver juntas, ainda que apartadas

Escrever estas palavras hoje, em pleno cenário pandêmico e no contexto de uma mostra de cinema argentino feito por mulheres, me faz crer que o jogo entre impossibilidade e possibilidade (sobre o qual me dediquei em um estudo mais extenso, quando pensei cinematernidades) ainda funciona como um recurso para
acalmar meus impulsos mais ferozes. Existir aqui e agora, quando encontros são impossíveis, exige que eu me agarre ao que resta de possível – algo próximo a um estar junto, ensaiado pela iniciativa da CineMujeres 2021.

Não é novidade, pelo menos na academia, a noção de “ver juntos”. Apoiada em reflexões que me formaram enquanto pesquisadora de cinema e sem a pretensão
de inaugurar uma outra visada, proponho, aqui, que nos animemos em torno de um “ver juntas”, ainda que fisicamente apartadas.

Faço essa reivindicação alicerçada em duas memórias, uma mais distante e histórica, e outra mais próxima e pessoal. Brevemente, quero lembrar as iniciativas das mulheres dos primeiros feminismos (destaco, aqui, os anos 1960, 70 e 80), para as quais o convívio, a fala e o existir em comum impulsionou o reconhecimento e a elaboração de sua condição compartilhada no mundo. E, ainda, retomo uma vivência singular, de apenas dois anos atrás: a primeira edição da Mostra de Cinema Argentino de Mujeres e, especialmente, o dia da exibição de Julia e a Raposa (2018), de Inés María Barrionuevo, no qual os elos entre feminismo e cinema, potencializados pelo diálogo e pela experiência de assistência conjunta, pareciam mais harmônicos do que nunca.

Abraço essas memórias como minhas, num ímpeto de buscar no passado um entusiasmo para o presente.

Roberta Veiga (à esquerda) diretora convidada Inés María Barrionuevo (no meio) e tradução consecutiva da curadora Luisina Lopez Ferrari (à direita)
Segundo dia da 1° Edição da Mostra (2019), debate sobre Maternidade mediação de Roberta Veiga (à esquerda) diretora convidada Inés María Barrionuevo (no meio) e tradução consecutiva da curadora Luisina Lopez Ferrari (à direita).

Nessa linha, penso ainda no (quase recente) ontem, quando a conquista da legalização do aborto pelas companheiras argentinas (¡és ley!) se fez realidade. E no hoje, tempo no qual uma nova edição da mostra se faz (e se reinventa), ainda que necropolíticas insistam em querer minar a arte, os afetos e as possibilidades de ver/estar/elaborar juntas. Mesmo mediadas pelo online, a exibição e a discussão em torno dos filmes se faz possível (e política), nos unindo e movimentando de alguma forma.
Distantes, ainda estamos aqui.

Nessa teia de (im)possibilidades, um grito ainda se faz ouvir:
Viva o cinema de mulheres!

Seguimos.

Marina Fonseca Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCOM-UFMG), pela linha Pragmáticas da Imagem. Sob orientação da Profa. Dra. Roberta Veiga, pesquisou a aparição de corpos femininos no cinema, a partir das figurações e deslocamentos da maternidade. Integra ativamente o grupo de pesquisa “Poéticas Femininas e Políticas Feministas: a mulher está no cinema”. É graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, também pela Universidade Federal de Minas Gerais – nesse período, construiu um percurso acadêmico voltado para o audiovisual, tendo também desenvolvido pesquisa em torno da figuração do feminino no cinema de Lars von Trier.

Leia Mais

Quer saber como surgiu a Mostra de Cinema Argentino de Mujeres?

¡Hola!
Quer saber como surgiu a Mostra de Cinema Argentino de Mujeres?

Se prepara que vem história, então é bom fazer um cafezinho – sem açúcar pra mim por favor – e vem comigo que te conto!

Ano 2018, foi a primeira Fiesta de Rua argentina em Belo Horizonte.
“Fiesta? Mas você não ia falar sobre a mostra? ” Calma, já vai ver que está tudo conectado!
Nicolás Pecchio, um argentino que mora em BH há muitos anos, promoveu os encontros, convocando e reunindo compatriotas que vivem em Minas Gerais. Assim, sempre no mês de maio – mês da comemoração da Revolução Argentina – ele cozinhava comidas típicas e fazíamos uma confraternização. Que para falar a verdade, pelas viagens a trabalho, só consegui ir uma vez, e no dia anterior da reunião, para ajudar a preparar empanadas. Aliás, foi assim que o conheci, em 2012, graças à minha amiga Ana Laura Corte – outra argentina que vivia naquela época na cidade. Assim, esses eventos foram ganhando magnitude e cada vez mais pessoas (de todas as nacionalidades) estavam presentes. Com o Centro Cultural Argentino em Minas Gerais (CCAMG) consolidado, começaram a pensar em fazer uma Festa Argentina na rua!

Voltando a 2018, Nicolás me conta que estava organizando a Primeira Fiesta Argentina em BH e me apresentou a Marcelo Gomez, que também é membro fundador do CCAMG e organizador da festa. Eles me chamaram para fazer a cobertura audiovisual do evento. Para quem não me conhece, trabalho com audiovisual desde 1997, passando por váaaarias áreas e com a minha empresa formalizada em BH desde 2016, a “Sem Fronteiras Cultura Audiovisual” (quando adolescente queria ser médica sem fronteiras, entendeu?! – 😛 ).

E o que tudo isso tem a ver com a Mostra? Caaaalma, te disse que era uma história e tanto!

No final de outubro de 2018, fui convidada pelo Consulado Argentino de Belo Horizonte, mediado por Marcelo Gomez, para fazer uma Mostra de Cinema Argentino em BH. Quando nos reunimos pela primeira vez, em outubro daquele ano, pedi a lista de filmes que faziam parte do acervo da embaixada da Argentina no Brasil. Para minha surpresa (ou talvez nem tanta), a lista era de filmes majoritariamente de diretores homens. E graças a essa lista é que veio o insight!

Até então, nunca tinha organizado uma Mostra de Cinema e tampouco tinha feito curadoria. Peeeeero tinha claro qual era o recorte que queria, meu leitmotiv: cineastas e protagonistas MULHERES; e também a data em que aconteceria: MARÇO de 2019. Fatores fundamentais e determinantes, então mãos à obra! {Tema para um próximo capítulo: como sobreviver à primeira curadoria}.

De outubro de 2018 a janeiro de 2019, mil coisas aconteceram … inclusive receber a notícia de que não havia verba para o evento, zero money my darling, nem pra pagar a taxa de exibição dos filmes que já tinha selecionado. Naquela época, além da curadoria e produção da mostra, estava trabalhando na pesquisa e tradução do documentário “Helena Antipoff”, este ponto é muito simbólico pra mim. Para quem não sabe e de forma muito resumida, vou contar: Helena foi uma psicóloga e pedagoga russa que chegou ao Brasil em 1929 sem falar uma palavra em português. Ela morou no Rio de Janeiro e depois veio para Minas Gerais onde se radicou e foi a pioneira na implantação da educação especial integrada e da educação rural. O legado dela é muito mais do que isso e abaixo deixo o link do documentário completo para que possam conhecê-la mais. Tive o privilégio de ler seus diários (de luvas e máscaras, quando as máscaras não faziam parte do nosso dia-a-dia) e ouvir histórias de pessoas que a conheceram. A maioria concordou em dizer “…ela continuava sem se importar com as condições, o contexto nunca foi favorável, mas ela não parava para esperar. Simplesmente fazia! Ela nos ensinou a plantar para não depender… ” Obrigada Helena!! E meu agradecimento especial para Ana Amélia Arantes por me apresentar a esta mulher tão poderosa e por me dar a oportunidade de trabalhar em um projeto que também foi decisivo para a Mostra!

Em fevereiro de 2019, e quase sonhando com a inspiração da Helena, decidi continuar apesar de tudo e recalculando a programação, as diretoras argentinas convidadas, o espaço expositivo, a identidade visual e tuuuuudo mais! Avalanche de emoções, oh yeah baby!

Assim, junto com Marina Lomazzi, que na época era secretária do CCAMG, continuamos com a produção e com os filmes que selecionei, mas apenas com as distribuidoras que abraçaram a causa e apoiaram sem a cobrança das taxa de exibição, e em alguns dos casos, com permuta da tradução e legendas em português.

Entoncesssss:
– de dez filmes, ficaram seis.
– das três diretoras convidadas, ficou uma. {Este será o assunto de um próximo capítulo: “como conheci Inés!”}
– a sala de cinema Humberto Mauro entrou como parceira na realização.
– vaquinha dos meninos do CCAMG para compra de passagem {Isso também será assunto de um próximo capítulo: “a passagem de última hora, literal”}

E claaaaaro, ter um grupo de apoio de amigos profissionais, que aderiram ad honorem, fez tooooooooda a diferença (pode olhar a ficha técnica e ver quantas pessoas trabalharam para poder realizar a Mostra).

Continuamos em fevereiro de 2019, quase chegando o carnaval, e ainda não tinha identidade visual definida. Falei o que estava acontecendo com minha amiga, a artista e designer Raquel Pinheiro, e ela olhou os gabaritos que tinha e me falou: entendi, mas posso refazer?. Assim ela criou, em tempo quase recorde, o que seria a cara da Mostra.

Faltando menos de uma semana para o evento começar e enquanto estava na sala de cine Humberto Mauro fazendo os testes técnicos dos filmes, percebi que não tinha a vinheta de apresentação. Voltei para casa caminhando, preocupada e pensando no que poderia fazer. Naquele momento vi uma folha de árvore caindo quase voando pelo ar, numa dança sutil, deixando-se levar pelo vento.
Lembra da Ana Laura Corte, que mencionei antes? Bem, ela é dançarina e admiro muito o trabalho dela. Automaticamente pensei na Ana. Era ela dançando! Liguei para ela na hora, nessa época ela estava morando em São Paulo. Falamos sobre conceito, cores, estilos e música… e a música? Aí, me lembrei de outro amigo argentino, Juan Carizzo, músico independente. Falei com ele, e me disponibilizou a sua discografia para escolher à vontade e piacere! Adorei a sua: “Macabra”. Só que era uma música de mais de 7 minutos. Editei e saiu uma nova versão de 2 minutos e 6 segundos (com autorização dele, é claro!). Enviei para a Ana e depois de três dias ela me mandou o material que gravou junto com outro argentino e diretor de fotografia, Martin Avaro.

Comecei a editar e minhas vozes internas começaram: vai ter lettering, locução? Comecei a escrever, pedi umas dicas ao meu outro amigo, o roteirista Lucas Lanza. Ele fez algumas sugestões e, junto com Ana, o finalizamos!. Mas vai ser em espanhol ou em português? Pensei, porque escolher quando podemos ter os dois?! Então foi: locução em espanhol e letterings em português! Minha amiga equatoriana e locutora, María de los Ángeles Guerrero, deu-lhe a voz (graças ao meu amigo Lúcio Benedetti que conseguiu gravá-la), e por fim, a cor e a animação ficaram com a magia de Paulo César Alvim.

E foi assim que em março de 2019 tivemos a Primeira Mostra de Cinema Argentino de Mujeres, três dias consecutivos de sala lotada, e gente de todas as idades emocionada com os filmes. Tivemos também uma palestra ministrada por Isabelle Anchieta, participação da cineasta argentina convidada Inés María Barrionuevo, conferência com Roberta Veiga, rodas de conversa com o público presente e degustação de comidas típicas oferecidas pelo Che Nico Sabores Argentinos (para saber mais pode ir ver o histórico).
{no capítulo de curadoria também vou contar como conheci as palestrantes}

Como você viu, a base da Primeira Mostra de Cinema Argentino de Mujeres é uma rede de amor e união de forças! Pode parecer “fofinho demais”, mas realmente sinto que foi desse jeito! Claro que também ser teimosa e apaixonada tem suas vantagens , né?! Trabalhar com cultura quando não há recursos financeiros não é fácil e muitas vezes se torna um ato de resistência. E é essa resistência que, quando nos conectamos, nos inspira, nos fortalece e acaba nos salvando!

Foi muito gratificante fazer parte desta ponte entre estes dois países que são tão importantes para mim. Muito obrigada por todas as pessoas talentosas que abraçaram o projeto e acreditaram (e ainda acreditam) na potência de ter Mostras com este tipo de recorte! Muito grata também às pessoas que participaram! Foi uma sincronia e tanta! Gracias!!

E em 2020?

Vou continuar falando sobre isso em outro capítulo, tá?

Um abraço e até o próximo cafezinho!

Ah, o link do documentário: Entre Mundos – vida e obra de Helena Antipoff

Revisão de texto
Kharla Costa
Renata Martins
¡Gracias chicas!

Leia Mais